as pessoas não podem viver com a verdade, mas também não podem viver sem ela. de afastarem-na da sua beira, gela-se-lhes o coração; de achegarem-na de mais, enchem-se de lapas. para isso existem as histórias, os contos: para termos a verdade perto e oculta a um tempo.
Numa recente postagem, falando do labor poético, o mário dos escravos usou uma imagem da que gostei muito: a poesia é como um peixe que atrapas que elevas que escorrega que foge mas que deixa nas mãos o cheiro a mar o saibo a salitre. igualinho que este livro. impossível explicá-lo, debulhá-lo, fazer umha resenha dele que revele o seu segredo, porque este desvela-se sem ser desvelado, acovilha-se mostrando-nos o esconderijo: literatura com maiúsculas.
o argumento ao que recorre martín garzo é simples: ariadne conta a outra versão, a sua, de todo o acontecido com o seu irmão e o famoso labirinto. através da narração, da arte de contar, desenguedelha os fios e vai dando forma ao embrulho que vém sendo a outra face do mito, da lenda. nesta outra face o monstro é um triste menino-touro, de nome bruno, que chega a um mundo cujos habitantes não estão preparados para tratar com o diferente. o labirinto é o resultado do ilimitado amor paterno, que quer proteger a sua descendência das dores do mundo. e a palavra é simplesmente a única arma das pessoas para manter-se firmes perante a morte, para suportar os seus envides.
o delicioso do romance é a transformação de ariadne numa sherezade sem sultão. conta e conta e conta, repete-se e repete-se, vai de digresão em digresão, mas nunca perde o fio do novelo e com ele nos mantém atrapadas na leitura. essa voz tem tal capacidade de fascinação que chega a ser perigosa: faz que abandonemos as naves e prefiramos ser apresadas na sua ilha fabuladora. uma personagem, nómada, faz o contraponto da contadora: é só palavra, só cabeça (está mutilado e não tem corpo), e adica-se a percorrer as ilhas todas, as terras incógnitas ,na procura de histórias que fabular e vender. ele foi que inventou o mito, ele é o enganador de palavras. ele escuita tudo quanto bruno, ariadne, sombra, eco e alma tenham que contar, para poder seguir o roteiro da fábula, para continuar vivo embora sem corpo. como homero.
centos de cousas poderia destacar da leitura: o aproveitamento e reversão dos mitos greco-latinos, como esse bruno feito sereio que faz as doncelas suplicarem ser atadas para não sucumbir aos seus mugidos, ou essas asas icarianas que percorrem o mediterrâneo de porto em porto; ou, de volta a mitos modernos, esse frankenstein anacrónico que é artífice, tentando uma vez e outra reproduzir a vida nos seus bonecos autómatas... gosto da ideia do jardim com ponte entre o mundo dos vivos e o dos mortos, o mundo dos sonhos e o dos despertos, com esses ovos que sombra, irmã de ariadne e bruno, traz dos sonhos para criar gansos etéreos...
insisto, literatura com maiúsculas, bem difícil de explicar.
p.d.: e a casualidade faz que lera simultaneamente, sem sabê-lo previamente, quer dizer sem intenção, duas obras contemporâneas que pretendem um re-visão do mito do labirinto. cruzamentos que enriquecem o caldo da leitura!
o argumento ao que recorre martín garzo é simples: ariadne conta a outra versão, a sua, de todo o acontecido com o seu irmão e o famoso labirinto. através da narração, da arte de contar, desenguedelha os fios e vai dando forma ao embrulho que vém sendo a outra face do mito, da lenda. nesta outra face o monstro é um triste menino-touro, de nome bruno, que chega a um mundo cujos habitantes não estão preparados para tratar com o diferente. o labirinto é o resultado do ilimitado amor paterno, que quer proteger a sua descendência das dores do mundo. e a palavra é simplesmente a única arma das pessoas para manter-se firmes perante a morte, para suportar os seus envides.
o delicioso do romance é a transformação de ariadne numa sherezade sem sultão. conta e conta e conta, repete-se e repete-se, vai de digresão em digresão, mas nunca perde o fio do novelo e com ele nos mantém atrapadas na leitura. essa voz tem tal capacidade de fascinação que chega a ser perigosa: faz que abandonemos as naves e prefiramos ser apresadas na sua ilha fabuladora. uma personagem, nómada, faz o contraponto da contadora: é só palavra, só cabeça (está mutilado e não tem corpo), e adica-se a percorrer as ilhas todas, as terras incógnitas ,na procura de histórias que fabular e vender. ele foi que inventou o mito, ele é o enganador de palavras. ele escuita tudo quanto bruno, ariadne, sombra, eco e alma tenham que contar, para poder seguir o roteiro da fábula, para continuar vivo embora sem corpo. como homero.
centos de cousas poderia destacar da leitura: o aproveitamento e reversão dos mitos greco-latinos, como esse bruno feito sereio que faz as doncelas suplicarem ser atadas para não sucumbir aos seus mugidos, ou essas asas icarianas que percorrem o mediterrâneo de porto em porto; ou, de volta a mitos modernos, esse frankenstein anacrónico que é artífice, tentando uma vez e outra reproduzir a vida nos seus bonecos autómatas... gosto da ideia do jardim com ponte entre o mundo dos vivos e o dos mortos, o mundo dos sonhos e o dos despertos, com esses ovos que sombra, irmã de ariadne e bruno, traz dos sonhos para criar gansos etéreos...
insisto, literatura com maiúsculas, bem difícil de explicar.
p.d.: e a casualidade faz que lera simultaneamente, sem sabê-lo previamente, quer dizer sem intenção, duas obras contemporâneas que pretendem um re-visão do mito do labirinto. cruzamentos que enriquecem o caldo da leitura!
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