quarta-feira, 3 de abril de 2013

rabos de lagartixa

juan marsé: rabos de lagartija. barcelona 2000.

recém acabadinho e deixando um regosto de boa literatura. como bem diz uma das citações iniciais: nom contes a verdade, conta máis.
e para falar dos horrores da guerra incivil, nada melhor que não falar deles, mas da posguerra. e para falar das misérias diárias das perdedoras, nada melhor que não falar delas, mas das fantasias das suas crianças.

uma mestra republicana represaliada a trabalhar de costureira, um polícia da brigada político-social apaixonado por uma mestra represaliada. um homem fugido e provavelmente morto deixando atrás mulher represaliada e grávida. um filho de mestra represaliada e sindicalista fugido que mantém um cadelinho quase morto de tão cadáver, odeia os guripas, gosta de vestir de menina e fala com as pantasmas na noite entanto segue a zoar-lhe nos ouvidos o barulho dos últimos bombardeios em barcelona. 

e tudo contado pola voz onipresente duma criança ainda não nascida, a crescer no ventre duma mestra represaliada agotada de tanto trabalhar de costureira e suportar as visitas de um guripa da social entanto o seu filho sim nascido anda nas traseiras dos cinemas aprendendo sexo com Paulino e fala na noite com um aviador das RAF.

poucas personagens (mai, filho, cão, amigo e polícia) mas tão bem construídas, tão elaboradas, que nelas vemos representada a atmosfera dum época dura, duríssima: essa posguerra faminta e silenciada na que as pessoas arrastavam as suas vidas como chispa arrastava o seu corpo acabado e dolorido. aguardando a morte como a última esperança de libertação. 

do que mais gostei na obra foi do seu realismo fantasiado. a veracidade da trama e das cenas diárias é acompanhada polas cenas nascidas da imaginação desbocada de david, que fala com as gentes do mundo real igual que com as gentes do seu mundo fantasma, que necessita inventar palabrijas para proteger da dor o seu amigo Paulino, que precisa contar mentiras para que a verdade seja sabida. gosto de que conte umas histórias autênticas de cuja autenticidade nos protege esse narrador assim tão inverosímil, um feto ainda não nado.

nada como a fabulação mais fabulada para fazer-nos ver a realidade. isso defende david, o protagonista, e isso demostra marsé, o autor.




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