sábado, 30 de agosto de 2008

terra sonâmbula

COUTO, mia: terra sonâmbula. editorial caminho. lisboa 1992.

a vida no gosta de sofrer. a terra anda a procurar dentro de cada pessoa, anda juntar sonhos. sim, faz conta ela é umha costureira dos sonhos.

muidinga e tuhair som dous órfaos da guerra do moçambique. tuhair é um velhote com todas as memórias ao lombo. muidinga é um menino que todo esqueceu. juntos aguardam, na berma da estrada, vivendo nos restos queimados dum coche de línea, que a guerra acabe. gastam o tempo dando passeiadas pola volta do refúgio e lendo, muidinga para si e para tuhair, os cadernos de kindzu, único cascalho recuperado das cinzas do bus.
nos passeios por volta do machimbombo, tuahir e muidinga tenhem encontros com gentes de todo o tipo, que contam as suas estórias, explicando-se a si e explicando-nos, o horror de um país desfeito. nunca estamos certos, nem protagonistas nem leitores, se os encontrados som pessoas ou fantasmas: os vivos semelham ânimas em pena e as ânimas nom encontram acougo na terra, de revolto que anda o mundo. por contra, kindzu, o autor dos cadernos, é um moço que conta do seu peregrinar polo mundo fugindo do espírito de seu pai e procurando unir-se aos guerreiros naparamas para livertar a terra. reunem-se assim três histórias e centos de estórias, que em realidade som umha: a das desfeitas da guerra.
avançada a trama, tuahir, homem sábio, cai na conta de que nem ele nem muidinga se deslocam por nenhures quando caminham, mas que eles e o seu machimbombo ficam parados, entanto é moçambique, as suas diversas terras e os seus diversos habitantes a desfilar perante eles, testemunhas do sonho. é a terra a que anda a peregrinar na procura duns novos habitantes que a arrinquem do pesadelo e a devolvam à vida.
os cadernos de kindzu vam exercer de grande texto fundador dum novo mundo e muidinga, menino dememoriado que nem sabe que aconteceu na guerra, será o responsável de dar começo à nova era. o caderno e tuhair aprenderam-lhe a sonhar.
o romance lim-no lento, aos poucos, pois requeria de mim mais esforço que outros. a lingua, esse português moçambicano que usa o autor, estonteou-me desde as primeiras linhas pola sua riqueza, a sua originalidade e, sobretodo, a sua liberdade criativa. na minha ignorância, nom sei que tanto por cento dessa língua escrita faz parte da variedade moçambicana e que tanto por cento é idiolecto, criaçom pessoal do escritor, mas já gostaria eu de ler mais amiúde galegos como este.
e procurando ligaçons para este postinho, descubri que há umha versom cinematográfica do romance. eis o trailer.




quarta-feira, 27 de agosto de 2008

a casa de mango street


sandra cisneros. a casa de mango street. rinoceronte editora. cangas 2008. traduçom de alicia meléndez sousa.

lim também a casa de mango street, mas como gostei muito, já emprestei o meu exemplar e nom podo fazer resenha sem livro diante do nariz. vai para quando volte a mim. só dizer que a protagonista também é criança inocente, mas de inocência muito máis trabalhada e lograda que outras.

pijamas raiados

boyne, john: o neno do pijama a raias. factoria k de libros. vigo 2007.

...vira umhas quantas vezes o pai de bruno e nom era quem de compreender como um homem como ele podia ter um filho tam simpático e boa pessoa.

venho de ler a grande obra, o romance curto que o boca-orelha tem levado ao topo das listagens de vendas. e lim-no, entre outras cousas, porque fijo chorar à metade do meu alunado de quarto da eso [lerom-no para a matéria de ética]. algho havia de haver...
o neno do pijama a raias é um romance curto. o protagonista é um menino de nove anos que sofre a mudança da família para umha nova casa, por mor do trabalho do pai. vem sendo este o início tópico de muita narrativa adolescente. só que aqui nom há nova escola, nova panda nem conflitos com o novo professorado [seria o típico]. a metade da trama transcorre com bruno sozinho, aborrecido lá no casarom que habita com a sua família. com o avanço dos capítulos vamos sabendo aquilo que o protagonista sabe: que o pai trabalha para o fura e que o novo trabalho do papá está em ousvich. e nós deduzimos, depois de ter-lhe colhido um aquel de agarimo ao menino que seu pai é nazi, que o chefe é o führer adolf hitler e que a mudança foi feita para assumir o papá a direcçom de auschwitz.
bruno sinte-se só no casarom, acompanhado unicamente pola família directa e o serviço doméstico. nom há nenos em toda a volta, só aqueles que vivem do outro lado das grades. e, jogando aos exploradores, descobre o único amigo que fará em ousvich: shmuel, um neno que sempre está triste e viste um pijama a raias. amizade perigosa e com final trágico.
o livro faz-se fácil e rápido de ler.
mas a mim falhou-me a inocência do bruno: tem nove anos, nom cinco nem três. porvezes penso que é ingênuo de mais. penso que se pode nom compreender a ideologia nazi e as causas do holocausto com nove anos [algumhas nom as acabamos de ver com mais de trinta], mas associar o campo de concentraçom a umha prisom nom me semelha tam longe dumha mente infantil, sobretodo num neno que razona para deduzir que nom pode ser umha granja de animais. vendo ao seu arredor soldados uniformados, como nom deduz que o pijama a raias é algum tipo de vestimenta oficial e nom mal gosto estético por parte de shmuel? como nom podia dar-se conta de que passa fame porque nom lhe dam de comer, e nom porque queira? e depois de ver a malheira dada polo tenente kotler a pavel, como nom pode associar essa violência à situaçom das pessoas tras do arame farpado? o menos coerente, algumhas das conversas com shmuel. toda essa inocência, ingenuidade de bruno, embora seja a fortaleza do romance, a mim renge-me. resulta-me crível no meu alunado de quarto da eso, que passa de histórias do passado, de políticas balorentas, de contos de velhas, mas nom numha criança que está a vivê-lo no seu presente.
o interessante da obra, para mim, é o facto de dar protagonismo a quem nunca o tivo: o lado nazi. as testemunhas, umhas cúmplices no seu silêncio [a mai de bruno] outras inocentes [o próprio bruno, a sua avô], situadas na banda do agressor [o pai de bruno]. e como avós, filhos ou netos nom tenhem por que ser responsáveis das barbaridades que umhas pessoas cometam. às vezes, neste mundo em que vivemos, esquecemos isso.
outro elemento interessante é essa tentativa de fazer um achegamento emocional a um acontecimento histórico. o horror do holocausto pode chegar muito máis facilmente à mocidade actual, penso eu, através da empatia com a vítima, que por meio de documentais históricos ou charlas magistrais na aula. a outra inocência de bruno [a sua condeia nom culpável e sem consciência real do por que, ao estilo kafka] é o espelho de todas essas outras mortes inocentes em todos os campos de concentraçom, nazis ou actuais, como bem indica a contracapa do livro.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

de encontros com o outro

kapuscinski, riszard: encuentro con el otro. editorial anagrama. barcelona 2007

Quando hojendia, caminho por umha aldeia etíope levantada no meio das montanhas, corre atrás minha um grupo de crianças desfeito em risos e gozo; assinalam-me com o dedo e exclamam: Ferenchi! Ferenchi!, que significa, precisamente outro, estranho.

seguindo o meu roteiro pola obra de kapuscinski dei cabo, em meia tarde, dum pequeno opúsculo no que reflexiona sobre a alteridade. o livrinho recolhe o conteúdo de quatro conferências oferecidas em lugares diversos com o tema comum do outro.
nestas quatro conferências, aqui capítulos, kapuscinsiki percorre a história dos encontros entre Nós [eus] europeus e os Outros [os nom europeus] que polo mundo andam. conta como essa história de encontros está marcada em grande medida pola resoluçom violenta e para a dominaçom. mas também dá conta das tentativas dun encontro com o outro partindo do diálogo e a apertura, contando histórias como a de malinowski, ou teorias filosóficas como a de lèvinas.

duas ideias centrais:
  • a base da identidade das persoas e dos povos é a dicotomia eu-outro. somos em funçom dos outros, somos relaçom. o outro nom é mais que um espelho que precisamos para conhecermo-nos, que nos reflicte como realmente somos. um exemplo: o próprio kapuscinski conta como ele nom foi consciente da sua cor de pele até ver-se entre gente de cor diferente, porque a sua cor marcava as relaçons, para bem e para mal.
  • defrontar-se ao outro, encontrar-se com ele, nom é um caminho fácil. implica dúvidas, incomodos, malestar, porque implica pór em questom a própria identidade. o caminho fácil e cómodo é o da ignorância, o do despreço, o do isolamento.

e umha reflexom final que atinge ao mundo literário: a literatura actual foge do tema do encontro co outro. nom lhe interessa. questiona kapuscinski o feito de que nom houvesse escritores ocidentais quando a queda do sha, por exemplo, ou quando a guerra do golfo para viver, reflexionar e escrever sobre o encontro com o outro, quando este encontro, violento, está a marcar o rumo da vida mundial: há um desencontro absoluto da literatura com os dramas que sacodem o mundo perante os nossos olhos, a sua resignaçom a deixar o relato dos grandes acontecimentos em maos dos cámaras de televisom e os técnicos de som, constitui, ao meu parecer, umha manifestaçom da profunda crise que vivem as relaçons entre linha histórica e literatura, um sintoma da impotência da literatura perante os fenômenos do mundo contemporâneo.

Para pensar.